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Brasil

'O que aconteceu na Serra Pelada foi único, não vai se repetir', diz diretor de documentário sobre corrida do ouro

Garimpeiros trabalhando em Serra Pelada, no Pará, em imagem de 1980

Jair Bolsonaro planeja espalhar áreas de extração de minério pelo Brasil que poderiam ser exploradas por estrangeiros e povos indígenas, "com fiscalização pesada". Em entrevista ao GLOBO, o presidente disse que encomendou estudo ao ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, para criar o que ele próprio definiu como "pequenas Serras Peladas", referindo-se à famosa área no Sudeste do Pará que experimentou, a partir de 1980, enormes transformações sociais e ambientais com a chegada de dezenas de milhares de garimpeiros. Desde então, o antes desconhecido distrito no município de Curionópolis ganhou espaço no noticiário e na cultura popular. A corrida pelo ouro foi tema de filmes como "Os Trapalhões na Serra Pelada" (1982) e o documentário "Serra Pelada - A lenda da montanha de ouro" (2013), de Victor Lopes, que agora está levantando verba para rodar um longa de ficçao baseado na história da mesma formação rochosa.

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— O que aconteceu lá foi único, não vai se repetir. O impacto seria profundo demais para se reparar — comenta Lopes, que viveu 11 anos, de 2002 a 2013, pesquisando e gravando o documentário. — Liberar terras da Amazônia para exploração ou especular sobre novas Serras Peladas é um risco igual ao de subir e descer as escadas do garimpo. Algo que os garimpeiros chamavam de "Adeus, mamãe". 

Movimentação de garimpeiros em busca de ouro na Serra Pelada

O filme de 2013 mostra como a Serra Pelada se tornou, desde 1980, na Eldorado brasileira. Um local tomado pelo peso das promessas de enriquecimento rápido e fácil. Mas não foi apenas a descoberta do ouro que atraiu todo aquele exército de gente. A forte seca que atingia parte do Norte e Nordeste, além dos boatos de que “comunistas estavam doando terras” no Sul do Pará, levaram massas de maranhenses e piauienses para Serra Pelada. De acordo com Lopes, em três semanas havia 30 mil pessoas escavando por conta própria. O sobe e desce de pessoas com sacos de terra nas costas e nas cabeças, esquadrinhando os perigosos barrancos, atraiu fotógrafos e cinegrafistas, que produziram imagens divulgadas para o país todo. Há dois dias, o celebrado fotógrafo Sebastião Salgado abriu uma mostra com 56 imagens no Sesc da Avenida Paulista, em São Paulo.

— Ao mesmo tempo em que havia um grande controle dos militares sobre a área, o nível de organização era zero — relata o cineasta. 

Veja mais fotos do garimpo na Serra Pelada

A movimentação de pessoas levou diversos órgãos federais a se instalar na região, a começar pela Rio Doce Geologia e Mineração (DOCEGEO), subsidiária da antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce, que atuou como responsável pela infraestrutura do garompo e única comproadora do metal extraído da Serra Pelada, em seus primeiros anos. Era tanta gente em busca de riqueza que, já em 1981, os depósitos de ouro na superfície se esgotaram, e a DOCEGEO empregou o maquinário para continuar a garimpagem, que foi distribuída em diferentes áreas. Estima-se que, em 1983, 17 toneladas de ouro foram recolhidas. Muita gente ganhou muito dinheiro, mas uma parte desses "felizardos" perdia tudo pouco depois, no entorno da Serra Pelada, que àquela altura já estava cheia de bares, prostíbulos e jogatina. No dia seguinte, estavam todos de volta aos barrancos.

Página do GLOBO de 26 de outubro de 1986

Disputas violentas por áreas e dinheiro do garimpo, além de graves conflitos, marcaram a história local. Em 1987, um protesto de garimpeiros em Marabá foi reprimido brutalmente pela Polícia Militar. Estima-se que 79 manifestantes morreram no episódio que ficou conhecido como Massacre de São Bonifácio. 

Nos dias de hoje, Serra Pelada ainda é reconhecida pela riqueza mineral, sediando atividades de grandes empresas nacionais e mesmo estrangeiras. O lugar continua movimentando cifras altas, com direcionamento de royalties para os cofres públicos locais. Mas a quantidade de garimpeiros não chega perto da massa de mais de 70 mil pessoas que habitaram a região no auge do garimpo. A montanha original de 150 metros de minérios foi transformada, depois de quase 40 anos de mineração, em um "lago" de 150 metros de profundidade, recheado de mercúrio em seu solo.

— Essa simetria me fascinou. Serra Pelada teve a maior concentração de ouro do mundo, mas o local continua cercado de miséria até hoje — descreve o cineasta, que ficou surpreso ao descobrir que a busca incessante por riqueza não atrapalhava toda uma estrutura social e econômican ao redor do garimpo. — Tinham códigos de sobrevivência fortes, e ninguém passava fome. Sempre tinha trabalho nos anos do apogeu do garimpo.

Garimpeiros trabalhando em Serra Pelada, no sul do Pará, em 17 de dezembro de 1998

Os 11 anos em Serra Pelada fizeram Lopes entrevistar garimpeiros que terminaram ricos, pobres, alguns que saíram de lá e outros que permanecem até hoje na região. Todos com um notório saudosismo dos anos de abundância. Esse sentimento pode ser entendido como um “desespero social”, segundo o cineasta.

— O próprio ofício dos garimpeiros tem um componente, e os evangélicos também podem se enquadrar neste cenário, que é esse desespero social. Serra Pelada é uma tradução disso — reflete ele. — Não dizem que a fé remove montanhas? Esses homens removeram uma montanha de ouro com as próprias mãos, movidos por esse sonho de enriquecer. É o reflexo dessa sociedade de consumo. É uma forma de escravidão que todos nós estamos sujeitos diante da possibilidade da riqueza.

Depois de um tempo de reflexão para dar uma breve explicação do que foi Serra Pelada, o diretor Victor Lemos conclui:

— Serra Pelada foi, em si, uma grande redução da história do Brasil. Eu espero que a gente possa replicar histórias melhores.

Cineasta Victor Lopes durante a gravação do documentário "Serra Pelada - A lenda da montanha de ouro"

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