Firewatch - Review

Meu coração amanheceu pegando fogo

Review: Firewatch

Admito que estou ensaiando para escrever sobre Firewatch há quase um ano. Foi o tempo que precisei para digerir a história, jogar várias vezes do início ao fim, absorver a trama de maneiras diferentes, tirar e descartar conclusões significativas e desistir de fazer analogias ou comparações. Não compreenda mal, este não é o tipo de game complicado por natureza ou dependente de mistérios ou finais ambíguos. Na verdade, Firewatch vai direto ao ponto, com uma história linear que sofre quase nenhuma variação de acordo com suas escolhas. Mais do que qualquer coisa, o fator marcante de Firewatch é como o game faz o jogador se sentir antes, durante e depois da experiência.

Disponível desde fevereiro para PS4 e desde junho para Xbox One e PC, Firewatch foi eleito o "Melhor Game Indie de 2016" na eleição interna do IGN Brasil. A competição foi acirrada, e há quem não se conforme que o vencedor não tenha sido o misterioso Inside, do estúdio dinamarquês Playdead. Escolhas coletivas são realmente complicadas e nem sempre representam o óbvio. Se posso opinar sobre isso, digo que Firewatch venceu Inside por causa do coração batendo dentro de si -- não apenas um, mas dois, já que se trata de um game com dois protagonistas. Só que o jogador controla apenas um deles, enquanto interage e escuta o que o outro tem a dizer.

O projeto do pequeno estúdio norte-americano Campo Santo tem uma rara qualidade nas narrativas digitais atuais: não deixa com que o jogador se sinta excluído ou alienado por não se conectar aos personagens e suas questões existenciais. O protagonista, Henry, foge do estereótipo-padrão dos heróis digitais modernos: não tem habilidades sobre-humanas ou poderes místicos, está fora de forma, não tem sacadas geniais e possui tantas falhas quanto qualidades. Após experimentar uma tragédia no relacionamento mais importante de sua vida (não vale a pena contar spoilers, mesmo a trama se revelando em cinco minutos de história), ele decide fugir do mundo real e se esconde nos confins do Wyoming, o estado menos populoso dos Estados Unidos. O emprego de vigilante de incêndios em uma floresta protegida parece oferecer o isolamento necessário para quem perdeu tudo o que tinha e não sabe o que esperar dos dias futuros.

Desde o primeiro minuto na nova função, Henry começa a se comunicar via rádio com Delilah, sua bem-humorada e perspicaz coordenadora que se encontra em uma torre remota do outro lado da floresta. A rotina, em princípio, parece enfadonha. Utilizando-se de um mapa incompleto e de uma bússola, Henry precisa percorrer longas trilhas, procurando possíveis focos de incêndio e impedindo que grandes tragédias ocorram. Se as tarefas são tediosas em princípio, o mesmo não se pode dizer do desenvolvimento do relacionamento à distância com Delilah. A intimidade entre os dois cresce e se transforma a cada novo dia de conversas, mesmo quando as coisas parecem entrar em um loop digno de um "dia da marmota". É esse o momento em que um mistério começa a se desvendar, e Henry descobre que não está sozinho -- e não só isso, que está sendo observado o tempo todo.

Abrir mais detalhes do enredo estraga a experiência, e mesmo que você não se importe com spoilers, é ideal adentrar o mundo de Firewatch livre de qualquer informação a mais. Você não deveria saber com antecedência o que vai encontrar pelo caminho, porque o grande trunfo do jogo está na delicadeza com que apresenta as novas situações e desdobramentos da história. Tudo isso é favorecido pela ambientação fabulosa e bem construída, adornada por uma paleta de cores quentes que exprime tranquilidade e conforto. A Floresta Nacional de Shoshone é desolada e parece esconder perigos, mas você não tem receio de explorá-la por conta própria e desarmado (vale lembrar que é impossível falhar ou morrer durante a maior parte do jogo). Após alguns dias, parece perfeitamente apropriado querer estar lá durante todo o verão, experienciando uma agradável e necessária solitude. E o game torna isso possível de fato ao jogador, oferecendo um modo de exploração "free roam" que é habilitado quando se termina a aventura uma vez.

Firewatch se desenrola em um período de cerca de 80 dias, com saltos temporais bem colocados que proporcionam ganchos dramáticos ao enredo. Por exemplo, quando Henry e Delilah começam a compartilhar desejos mais íntimos, o jogo pula duas semanas adiante, provavelmente para relativizar a importância de tal fato e se focar no mistério que se desenvolve nas entranhas da floresta. Assim mesmo, é impossível esquecer por um único momento que Firewatch é um game sobre personagens, que só não se parecem mais reais porque jamais enxergamos seus rostos durante o jogo, apenas escutamos suas vozes.

A propósito, está nas vozes dos dubladores Cissy Jones e Rich Summer o verdadeiro coração de Firewatch. É quando observamos e tomamos parte da construção da relação entre Delilah e Henry que nos sentimos realmente em casa no confortável universo criado pela Campo Santo. Eles sabem que jamais poderão se encontrar, dadas as circunstâncias únicas em que se encontram, e parecem conformados com isso. Afinal, percebem haver coisas importantes acontecendo ao redor deles. Mas por mais intrigantes que sejam os mistérios, nenhuma trama engaja tanto em Firewatch quanto a crescente intimidade desses protagonistas, que desenvolvem a olhos vistos (e da maneira que o jogador quiser) uma relação mútua de admiração, confiança e, possivelmente, desejo. O amor, como se diz, é fogo que arde sem se ver.

Delilah e Henry não poderiam ser mais diferentes, e está nessa dinâmica o triunfo da narrativa de Firewatch. Queremos ver o resultado de qualquer papo furado entre os dois, por mais insignificante que as palavras possam parecer em princípio. Na verdade, tudo o que Henry descobre ao longo da aventura é resultado de seu esforço próprio -- Delilah é apenas uma conselheira que dá contexto aos fatos e eventualmente o direciona para o caminho correto. O que poderia dar margem à absurda hipótese de que Delilah só existiria na cabeça de Henry, como uma amiga imaginária gerada pela solidão absoluta da vida selvagem. Mas algo assim seria "muito Black Mirror" até para Firewatch.

Não deve ser segredo a ninguém que Firewatch é importante por causa de como sua história é contada, o que significa que os aspectos restantes esperados de um game são colocados em segundo plano. Com a visão em primeira pessoa, você apenas anda em frente e só pode interagir com objetos se isso ajudar a história a seguir. A jogabilidade não é perfeita, e os controles são mais imprecisos do que em outros jogos de ponto de vista semelhante. Alguns engasgos são visíveis quando se entra em um novo cenário e o salvamento automático é acionado. São questões que poderiam ser problemáticas em qualquer jogo, mas que em Firewatch combinam com o tipo de protagonista que você é. Henry não está exatamente em perfeita forma, demora a percorrer longos caminhos e tem habilidades físicas limitadas. Sob esse ponto de vista, Firewatch pode até se dar ao luxo de não ser perfeito, porque seu herói também não o é.

Mas que fique claro também que Firewatch não é um mero "walking simulator" disfarçado de uma história de relacionamento adulto. Ao mesmo tempo, não dá para dizer que é um game de ação, nem pode ser enquadrado no gênero mistério. Na verdade, é tudo isso ao mesmo tempo, e talvez algo a mais. Tirar conclusões antecipadas não ajuda Firewatch a mostrar todo o seu imenso potencial, então deixo você desenvolver suas próprias impressões do que significará essa curta experiência de profundidade inesquecível. As sensações, com certeza, serão diferentes das minhas.

Quem deve jogar este game

Fãs de boas histórias adultas, personagens realistas e emoções genuínas se sentirão recompensados jogando Firewatch. Quem busca experiências diferenciadas nos games também deve dar uma chance a um game de duração curta (é possível terminá-lo em quatro ou cinco horas), mas que se revela tão ou mais interessante e profundo do que muitos títulos AAA criados por grandes estúdios.

Prós

  • Dublagem perfeita
  • Visual incrível e estilizado
  • Mundo convidativo
  • História interessante

Contras

  • "Engasgos" ocasionais
  • Jogabilidade nem sempre amigável

O Veredicto

A narrativa de Firewatch brilha desde os minutos iniciais e se torna o principal motivo para se querer chegar logo ao final do jogo -- mesmo que a sensação seja tão boa que queiramos que ela se estenda ao infinito. Ainda que a conclusão não seja totalmente satisfatória, esta é uma jornada de solidão, curiosidade e autoconhecimento que vale todo o tempo investido. O roteiro primoroso faz com que a dupla de protagonistas se situe entre os personagens mais cativantes dos games recentes, cujo brilho só é maior ainda graças ao excelente trabalho do par de dubladores. Firewatch se revela o tipo de game que pode ser consumido diversas vezes, como uma série, filme ou livro favoritos, já que a cada nova tentativa ele pode ser interpretado e apreciado de uma maneira nova e satisfatória.

Neste Artigo

Firewatch

Campo Santo | 9 de Fevereiro de 2016
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Review: Firewatch

9.3
Incrível
Firewatch is a mystery set in the Wyoming wilderness, where your only emotional lifeline is the person on the other end of a handheld radio.
Firewatch
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